manual para cachoeiras*
acostumar os pés
palmilhar as pedras
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀com cuidado
muito cuidado
atentar para aranhas
(acima de tudo evitar
escorregar e bater a cabeça:
é muito inconveniente
morrer no rolê)
entrar de frente
recebendo a peito
rosto e boca abertos
as águas geladas
e só então te virares:
deixar a correnteza
lavar da tua pele
das tuas mãos
o amor extinto
que trazes ainda
entranhado em
tuas ranhuras
feito sangue seco
(nós, que amamos
demais
sempre trazemos
sangue seco
–– além do fresco ––
nas mãos)
* publicado no livro agora (depois) (Autografia, 2019)
um poema no antropoceno *
essas nuvens moles
sobre o mar de outono
(ou (já) será inverno
no calendário em fuga
do antropoceno?)
da cidade que habito
querem chover, segundo
deus me disse
(em silêncio)
mas algum segredo
que nem deus conhece
(só o poema
sabe, mas não
me diz)
torna a água em pó
cobrindo as gaivotas
que se esbatem à praia
da cinza malsã
que sangra o tempo
enquanto agoniza
(vai morrendo vai morrendo)
frente ao nosso espanto.
mas agora é manhã
(sem que eu tenha contado
quantas madrugadas cabem
nos espaços em branco
que o poema ordena)
e o sol do equinócio
(o tempo restaurado)
com sua força estúpida
obstinada
feito sêmen rubro
a fecundar calores
no ventre aflito
dos oceanos
vem redimir o mundo
(suas cidades, seus frutos podres
suas guerras tolas, sua mesquinhez
enorme)
por mais um dia.
cantemos
cantemos todos!
escapamos de novo
sem juízo ou mérito
(meros parvos
sobre a carne da terra)
da hora fatal
que feito nuvens de sal
a queimar o céu
até o rés do chão
virá um dia
(e nem deus nem eu
nem o poema
sabemos qual)
calar para sempre
as gargantas dos homens.
hoje não.
* publicado no livro Itinerários (Ed. UFPR, 2018 — disponível para download gratuito em https://www.editora.ufpr.br/produto/327/itinerarios)
Voyeur
⠀⠀⠀⠀ (para Arthur Scovino)
o meu olhar
⠀⠀ nu
que olha
os olhares
que eles
⠀⠀trocam
⠀⠀tocam
⠀⠀tangem
⠀⠀(tesão)
enquanto
o sol
queima
ângulos
volumes
mucosas
que em comum
(no mundano
comum dos dias)
não se olham
meu olhar
⠀⠀⠀nu
⠀⠀⠀nu
⠀⠀⠀nu
sem pudores
nem medos
é também
o olhar teu
dele (deles)
do sol e
de deus
(se ele existisse
para além da
pura nudez
do mundo
e dos seres)
o poema calmo
a inquietude réptil
que eclode sem som
de seu ovo invisível
nas horas sísificas
desenhadas a esmo
pelos dedos em lâmina
da madrugada daqui
essa inquietude estéril
feita de sede
fome sem nome
e mudez (de gestos)
devora as palavras
a voz os cabelos
os traçados
o sangue
os telhados as mesas
do poema calmo
(frágil
desenhado a flauta)
puro desejo de entrega
sem culpa e sem medo
que afinal não escrevo.
ais veis
há vezes em que o verso
se declara límpido
: avião riscando o céu azul
notas do piano cruzando o silêncio
corte de faca nova
toda brilho e exatidão
há vezes em que os versos
— improviso e convulsão
dança espontânea sem amarras
de um corpo forte
todo tesão —
são frenesi de estímulos
feito possessão
i ais veis nenhé
(é) só zuêra, distração
da vida útil das palavras
Thássio Ferreira: Autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016), Itinerários (Ed. UFPR, 2018 – obra vencedora do I Concurso Literário da Ed. UFPR) e agora (depois) (Autografia, 2019). Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Tem poemas e contos publicados em revistas (virtuais e impressas) e antologias, como Escamandro — poesia tradução & crítica, Gueto, Ruído Manifesto, Mallarmargens, Germina, Revista Brasileira (no 94), da Academia Brasileira de Letras, Revista Ponto (SESI-SP) e InComunidade (PT). Seu conto “Tetris” foi vencedor do Prêmio Off Flip 2019, e seu livro inédito “Cartografias”, finalista do Prêmio Sesc 2017. Participou da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) em 2017, na Casa LIBRE & Nuvem de Livros, a convite da Liga Brasileira de Editoras — LIBRE, e em 2018 e 2019 como realizador e debatedor da Casa Philos. Mantém a página facebook.com/thassioescritor, o instagram @thassiof e o twitter @thassiogf.